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domingo, 20 de fevereiro de 2011

SEGREDO DE ESTADO - LIVRO

História em ritmo de aventura
                   Fruto de quatro anos e meio de pesquisas e entrevistas, o livro Segredo de Estado – O desaparecimento de Rubens Paiva é uma boa novidade na já volumosa biblioteca brasileira sobre a violência do regime militar. Num trabalho que fica longe da aridez da maioria dos textos sobre o período, o autor, Jason Tércio, fez uma obra com a eletricidade de um romance policial, que se acompanha em alta velocidade. Os diálogos têm fluidez, a narrativa avança por vários momentos de suspense, não faltam cenas que emocionam.
                    Segredo de Estado busca prender a atenção do leitor para contar uma tragédia da ditadura: a história de um deputado, pai de família e empresário bem-sucedido que, em 1971, foi levado de sua casa na Praia do Leblon e morreu massacrado pela tortura, 48 horas depois. Um dos mais conhecidos integrantes da lista de desaparecidos políticos, até hoje a família não sabe o destino do corpo de Rubens Paiva. O Estado brasileiro levou mais de duas décadas para admitir que ele estava morto, algo que ocorreu apenas no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, amigo de Rubens Paiva, para quem rascunhava discursos políticos. O livro humaniza essa história, desvenda personagens, define contextos.
                       Filho de um imigrante português que fez respeitável fortuna no Brasil, Rubens Paiva surge nas páginas do livro nas dimensões de político, empresário bem-sucedido e pai de família. Deputado pelo PTB de João Goulart, cassado em 64, ele era um cidadão com ideias nacionalistas, que adorava bons automóveis, gostava de bons vinhos, bons charutos – e boas viagens pelo exterior.
                      Marido romântico, aproveitava datas importantes para escrever mensagens de amor à mulher, Eunice Paiva. Pai presente de uma família numerosa, gostava de pregar valores e cobrava atitudes dos cinco filhos, quatro meninas e um garoto. Capaz de pilotar um avião para ajudar um amigo a fugir da perseguição política, sua coragem pessoal levou um antigo colega de bancada a dizer que chegava a ser imprudente.
                    O texto de Jason Tércio captura cenas e costumes do Brasil do início dos anos 70. Os adolescentes ensaiam passos de rock na frente do espelho. Num país que se internacionaliza, sonham com Londres e aprendem línguas estrangeiras. Numa grande coincidência, a filha mais velha da família, Vera, está na capital inglesa, fazendo um curso de inglês, quando fica sabendo que o pai fora sequestrado pelos militares – graças a uma reportagem do jornal The Times, fora do alcance da censura à imprensa brasileira.

                 Num mundo descrito com realismo, os adultos conversam com copos de Campari na mão. Concentrado na fatia da elite civil brasileira que fazia oposição ao golpe de 64, o livro fala de pessoas que aguardam pela volta das eleições diretas e conversam sobre política num ambiente de vigilância, tensão e telefones grampeados. Não integram a luta armada e alimentam convicções democráticas. Consideram, contudo, que têm a obrigação moral de proteger os perseguidos pelo regime.
                   Naquele mundo militar policial, as prisões estavam lotadas, as organizações armadas sequestravam embaixadores e a ditadura respondia com dureza e brutalidade. Segredo de Estado localiza Rubens Paiva e família na rotina de seu tempo, preparando a grande ação dramática que mudará a vida de todos e de cada um: aquela manhã de 40 anos atrás, quando uma equipe do aparato de segurança, metralhadoras na mão, invade a residência da família numa alegre manhã de sábado para levar o chefe da casa para prestar depoimento – e nunca mais voltar.

                Com autorização da família, Jason Tércio teve acesso a depoimentos de quem testemunhou parte da brutalidade dos interrogatórios de Rubens Paiva, já sob tortura, num material que nunca tinha vindo a público. O livro deixa claro que os militares estavam convencidos de que o prisioneiro poderia ajudá-los a chegar ao capitão Carlos Lamarca, o mais importante líder da guerrilha na ocasião. Rubens Paiva tinha contato com um dirigente da organização de Lamarca, conhecido por “Adriano”, que ficou vivo para contar a história. É Carlos Alberto Muniz, atual vice-prefeito do Rio de Janeiro. As testemunhas descrevem a violência sofrida por Rubens Paiva na prisão e, pelo depoimento, ele apenas desconversava quando era interrogado sobre “Adriano”.
                     Há cenas vergonhosas pelo aspecto patético. Amigo da família, a ponto de hospedar-se na fazenda dos pais de Rubens Paiva, o então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, concordou em receber Eunice Paiva e o sogro em gabinete, semanas depois do desaparecimento. Naquele momento, a morte do deputado já era um fato sabido pela cúpula do regime, que chegou a encenar uma farsa cinematográfica para dar a impressão de que ele fugira de seus captores. No diálogo com familiares aflitos, Buzaid insiste que o marido de Eunice passa bem e assegura que será solto em uma semana ou 15 dias, “no máximo”.
                  O leitor deve ser advertido, contudo, de que Jason Tércio produziu uma obra com seus momentos de romance histórico. A narrativa conta uma história baseada em fatos reais. Amigos e familiares do deputado contribuíram com entrevistas, cartas pessoais, fotos e documentos. Muitos diálogos foram reproduzidos com base em testemunhos diretos. Antes de ser publicado, o livro foi revisado pelo escritor Marcelo Paiva, filho de Rubens Paiva. Nem tudo aquilo que se lê em Segredo de Estado, porém, pode ser colocado na categoria de fato verídico.

                Na página 288, por exemplo, o livro descreve a seguinte cena: depois de receber um documento de Eunice Paiva sobre o desaparecimento do marido, o general Emílio Garrastazu Médici, presidente da República, teria reagido com frieza. Diz o texto que ele “acende um cigarro e liga o radinho de pilha sobre a mesa”. É um momento importante da narrativa, que contribui para ilustrar a visão, historicamente correta, de que as principais autoridades do país não só sabiam o que se passava nos interrogatórios violentos, mas avalizavam e orientavam as linhas gerais das operações contra seus adversários. O problema é que essa cena não ocorreu. Foi imaginada por Jason Tércio, como ele admitiu em entrevista a ÉPOCA. Em outro diálogo, entre o próprio Médici e Orlando Geisel, ministro do Exército e um dos expoentes da linha dura militar, Médici diz que Rubens Paiva foi morto “em combate”. A afirmação, naquele contexto, implica reconhecer que ele morrera sob tortura. O diálogo pode – ou não – ter ocorrido. Mas o livro não traz referência sólida para sustentar o que diz. 
                       A combinação de realidade e imaginação não é uma invenção nova. Pode ser produto de uma necessidade legítima: preencher lacunas para determinados momentos da história que permanecem fechados à curiosidade de estudiosos e pesquisadores. Isso acontece naquelas situações em que verdades históricas são mantidas em arquivos fechados – como é o caso dos anos de chumbo da ditadura brasileira – e também quando os protagonistas não deixaram testemunhos confiáveis sobre seus atos. Mas existem recursos padronizados para separar uma coisa da outra. O mais comum são as notas de rodapé, que permitem um exame da origem das informações. Jason Tércio afirma que não usou notas de rodapé porque não queria “cortar a emoção da história”. É verdade que, para a maioria das pessoas, as notas de rodapé são um estorvo na leitura. Poucos leitores se dão ao trabalho de consultá-las. As próprias editoras fazem o possível para evitar sua publicação, por considerar que interrompem a narrativa, atrapalham a paginação e modificam a apresentação dos capítulos.

                       Mas haveria outro recurso. Em sua biografia sobre a primeira-dama argentina Evita Peron, Thomas Eloy Martinez levanta a hipótese de que, em determinado momento da existência, a mulher símbolo do peronismo teria feito um aborto. Martinez tinha lá suas explicações para pensar assim. Mas agiu de modo cuidadoso e, antes de falar sobre esse evento hipotético, adverte o leitor de que tudo o que leria nos parágrafos seguintes era fruto de sua imaginação. Os relatos da vida cotidiana fazem de Segredo de Estado uma obra útil para entender uma época. A narrativa facilita a leitura. Mas o livro teria mais credibilidade se tivesse separado os fatos da imaginação.
NOS TRILHOS E NOS TRINQUES...

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